Coronavirus e suas implicações ao sistema cardiovascular

A pandemia por coronavírus-2019 (COVID-19) é caracterizada por uma doença infecciosa aguda que pode levar a uma grave pneumonia e síndrome da angústia respiratória aguda, podendo também apresentar manifestações extrapulmonares e outras complicações. Uma grande proporção de pacientes tem doença cardiovascular subjacente e/ou fatores de risco cardíacos, que se associam à alta morbimortalidade, como sexo masculino, idade avançada e presença de hipertensão arterial, diabetes mellitus, doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca e doenças cerebrovasculares, e que tem implicações significativas nesse grupo de indivíduos. Primeiro, aqueles com COVID-19 e doença cardiovascular preexistente têm um aumento do risco de agravamento e morte. Segundo, a infecção tem sido associada a múltiplos fatores diretos e indiretos para complicações cardiovasculares, incluindo lesão aguda do miocárdio como miocardite, síndrome coronariana aguda das mais diferentes formas de apresentação, exacerbação de insuficiência cardíaca, arritmias e tromboembolismo sistêmico. Terceiro, as terapias sob investigação para COVID-19 podem ter efeitos cardiovasculares adversos. Quarto, a resposta ao COVID-19 pode comprometer a triagem rápida de pacientes não-COVID-19 com condições cardiovasculares agudas. Finalmente, a prestação de cuidados cardiovasculares pode colocar a saúde dos profissionais em posição de vulnerabilidade  à medida que se tornam hospedeiros ou vetores de transmissão de vírus.

Complicações cardiovasculares da infecção por influenza e outros coronavírus já foram bem estudadas durante epidemias anteriores e é fato que contribuem significativamente para a morbimortalidade. Hipotensão, taquicardia, bradicardia, arritmias, ou mesmo morte cardíaca súbita são comuns em pacientes com SARS.A alta prevalência de arritmias pode ser, em parte, atribuível a desordem metabólica, hipóxia, estresse neuro-hormonal ou inflamatório no cenário de infecção viral em pacientes com ou sem doença cardiovascular prévia. Alterações funcionais e anatômicas cardíacas, além da analise laboratorial da elevação de marcadores de necrose miocárdica e de disfunção cardíaca podem sinalizar dano cardíaco subjacente e levam a uma maior probabilidade da necessidade de ventilação mecânica naqueles com função cardíaca comprometida.

Em artigo publicado na revista JAMA, de 25 de março de 2020, intitulado Association of cardiac injury with mortality in hospitalized patients with COVID-19 in Wuhan, China, os autores relatam sobre a associação entre o dano cardíaco e mortalidade em pacientes com COVID-19. Um total de 416 pacientes hospitalizados com COVID-19 foram incluídos na análise final; a média de idade foi de 64 anos e a maioria era do sexo feminino. Um total de 82 pacientes (19,7%) tiveram lesão cardíaca, caracterizada pelo aumento dos níveis dos marcadores de lesão miocárdica, e, em comparação com pacientes sem lesão cardíaca, esses pacientes eram mais velhos, com idade média de 74 anos; tinham mais comorbidades, como hipertensão arterial sistêmica(59,8%), diabetes mellitus  (24,4%), doença cardíaca coronária (29,3%), doença cerebrovascular (15,9%), insuficiência cardíaca (14,6%), doença pulmonar obstrutiva crônica (7,3%) e câncer (8,5%). Apresentaram maior contagem de leucócitos, elevação dos níveis de proteína C reativa, troponina, CKMB, mioglobina, creatinina e NT-ProBNP, porém apresentaram níveis baixos na contagem de linfócitos, de plaquetas e de albumina e tiveram uma proporção mais alta de imagens múltiplas e opacidade em vidro fosco nos achados radiográficos (64,6%). Dos pacientes com lesão cardíaca comprovada por alterações de troponina, os ECGs se mostraram anormais, com achados compatíveis com isquemia miocárdica, como depressão e inversão da onda T, depressão do segmento ST e ondas Q, porém muitas vezes com estudo de artérias coronárias normais. A maior incidência de pacientes com lesão cardíaca exigiam ventilação mecânica não invasiva ou invasiva do que aqueles sem lesão cardíaca. As complicações foram mais frequentes em pacientes com lesão cardíaca do que naqueles sem lesão cardíaca e incluíram síndrome do desconforto respiratório agudo, lesão renal aguda e distúrbios da coagulação. Pacientes com lesão cardíaca tiveram maior mortalidade do que aqueles sem lesão cardíaca (42 de 82 (51,2%) vs 15 de 334 (4,5%).

O mecanismo de lesão cardíaca entre esses pacientes com COVID-19 permanece incerto. Estudos prévios mostraram que o MERS-CoV causa miocardite aguda, manifestada como edema do miocárdio e lesão miocárdica aguda das paredes apical e lateral do ventrículo esquerdo. Essa lesão miocárdica regional pode resultar da infecção viral direta do miocárdio. Com base em estudos recentes, a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2) é um receptor celular humano com forte afinidade de ligação à proteína Spike da SARS-CoV-2, e a ECA2 também é altamente expressa no coração. Assim, é racional supor que a lesão cardíaca induzida por COVID-19 possa ser mediada pela ECA2. No entanto, as evidencias até o momento não podem afirmar se estas lesões são devidas à agressão direta do coração pelo vírus ou indiretamente como consequência à tempestade de citoquinas que é evidenciada como resposta inflamatória sistêmica à agressão celular ou mesmo à disfunção respiratória e hipoxemia causada pelo processo inflamatório e/ou infeccioso pulmonar, resultando em danos às células do miocárdio. Assim, devido às atuais evidências limitadas, a questão de saber se o vírus SARS-CoV-2 pode lesar diretamente o coração requer maiores estudos.

Embora existam poucos estudos para estabelecer uma associação direta entre lesão cardíaca e comorbidades cardiovasculares, é racional presumir que pacientes com doença arterial coronariana ou insuficiência cardíaca sejam suscetíveis a lesão cardíaca e, uma vez infectados por pneumonia grave, a isquemia ou disfunção cardíaca são mais prováveis ​​de ocorrer, levando a uma deterioração repentina. A atividade inflamatória nas placas ateroscleróticas coronárias é exacerbada durante a resposta inflamatória sistêmica, tornando-as propensas à ruptura. A inflamação também causa disfunção endotelial e aumenta a atividade pro-coagulante do sangue, o que pode contribuir para a formação de um trombo oclusivo sobre uma placa coronariana rompida, uma anastomose, uma ponte ou sobre uma prótese de Stent. Com base nessas linhas de evidência, há que se pensar que uma resposta inflamatória intensa sobreposta a doenças cardiovasculares preexistentes possa precipitar lesão cardíaca observada em pacientes com infecções por COVID-19.

Em outro artigo também publicado na revista JAMA, intitulado Cardiac Involvement in a Patient with Coronavirus Disease 2019, Institute of Cardiology, Department of Medical and Surgical Specialties, Radiological Sciences, and Public Health, University of Brescia, Brescia, Italy,  de 27 de março de 2020,  os autores publicaram o relato de caso de uma paciente saudável de 53 anos que desenvolveu miopericardite aguda com disfunção cardíaca severa confirmada por exames laboratorias de lesão miocárdica e de ressonância nuclear magnética cardíaca uma semana após o início dos sintomas devido ao COVID-19. A paciente foi tratada conforme as diretrizes para disfunção ventricular esquerda aguda e protocolo da instituição para Covid-19, com estabilização progressiva do quadro clínico.

Estudos anteriores em outras espécies de coronavírus (MERS-CoV) demonstraram evidências de miocardite através de ressonância nuclear magnética, assim como inflamação e dano do miocárdio também foram relatados com infecção por COVID-19. Em estudo de mortalidade de casos por Covid-19, 7% foram atribuídos a miocardite com insuficiência circulatória aguda (choque cardiogênico) e em 33% dos casos a miocardite pode ter contribuído para a morte dos pacientes. Outros relatos têm descrito miocardite fulminante em menos de 48 horas do inicio dos sintomas num cenário de alta carga viral com achados de autópsia de infiltrado mononuclear no tecido miocárdico.

Pacientes com síndrome coronariana aguda (SCA) que são infectados com SARS-CoV-2 geralmente apresentam um prognóstico ruim. Em pacientes com SCA, a reserva funcional cardíaca pode ser reduzida devido a isquemia ou necrose do miocárdio. Quando infectada com SARS-CoV-2, a insuficiência cardíaca é mais provável de ocorrer, levando a uma deterioração repentina na condição desses pacientes. A infecção por SARS- CoV-2 pode atuar como um precipitante fator para piorar a condição e levar à morte.

Como demonstrado nas casuísticas que vão sendo publicadas nas revistas científicas, todos os esforços devem ser feitos para otimizar as estratégias de tratamento orientadas por diretrizes que demonstraram melhorar o estado clínico em pacientes de alto risco e, assim, reduzir a ameaça de agravamento dos sintomas ou eventos agudos cardíacos associados à infecção.

O reconhecimento pela comunidade médica de alterações cardiovasculares agudas como uma possível complicação associada ao COVID-19 pode ser útil para o monitoramento rigoroso dos pacientes afetados e também para aprofundar o conhecimento dessas complicações para as autoridades de saúde pública.

Neste caso, são fundamentais a vigilância clínica e análise cardiológica através da realização do eletrocardiograma e de exames de imagens cardíacas, como ecocardiograma, tomografia ou ressonância magnética cardíaca, além da analise laboratorial da elevação de marcadores de necrose miocárdica (mioglobina, a aspartato aminotransferase, a creatinoquinase, a desidrogenase láctica e as troponinas) e de disfunção cardíaca (N-terminal do peptídio natriurético tipo B ou NT-proBNP), em indivíduos com sintomas recentes de doença respiratória e/ou cardíaca aguda para garantir a identificação apropriada e o isolamento imediato dos pacientes com risco de COVID-19 e, eventualmente, reduzir a transmissão adicional.

O mundo está aprendendo rapidamente a enfrentar uma situação sui generis e que nunca ocorreu na história da humanidade. Pacientes com doença cardiovascular subjacente e infecção por SARS-CoV-2 tem prognóstico adverso. Portanto, é fundamental a atenção que deve ser dada à proteção cardiovascular durante o tratamento para COVID-19.

 

SILVIO SOZINHO PEREIRA – CREMESP 52109

Cardiologista e Conselheiro do Cremesp
Coordenador da Câmara Técnica de Cardiologia do Cremesp