Transtornos mentais em profissionais da saúde representam uma outra pandemia associada à covid-19
A covid-19 têm causado grande repercussão e impactos em aspectos psicológicos e emocionais da população. O medo psicológico da pandemia é mais um fator estressor que os profissionais de saúde e a população têm de enfrentar, podendo contribuir com o surgimento ou agravamento de transtornos psiquiátricos, o que constitui uma pandemia dentro de outra. Esse foi um dos aspectos abordados pelo psiquiatra Ricardo Amaral, professor do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na aula virtual (live) Impacto da Covid-19 na saúde mental do médico e da população, promovida no dia 8 de abril pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), em suas redes sociais. O evento online contou com a participação do psiquiatra Edoardo Vattimo, coordenador de Comunicação do Cremesp.
“Os profissionais que atuam mais diretamente na linha de frente têm um medo psicológico da doença, sentindo-se ameaçados. Mesmo não sendo portadores do vírus, não conseguem pensar de forma tranquila ao entrar em contato ou estar diante de um paciente com possível quadro infeccioso e contagioso da covid-19”, disse Amaral. Para ele, este problema acaba se tornando uma questão tão grande quanto a pandemia em si.
Ele apresentou estudos relacionados à covid-19, que estabelecem paralelos sobre a síndrome respiratória aguda grave (SARS), doença também causada por coronavírus, nos anos 2000. Um trabalho produzido na Itália, pelos pesquisadores Luca Simione e Camilla Gnagnarella, relacionado à percepção de risco sobre a covid-19, demonstrou que profissionais de saúde da região Norte (Turim e Milão) tinham maior nível de estresse que seus colegas das regiões do Centro (Roma) e do Sul (Nápoles) porque estavam próximos ao epicentro da covid-19 no país. Ou seja, o fenômeno de ter de enfrentar a doença e de lidar com quadros graves piorou o estresse. Comparando com os períodos de outras síndromes respiratórias, desde 2005 (SARS), os autores afirmaram que os problemas mentais podem deixar sequelas nos trabalhadores da saúde durante ou após o período de quarentena e que, por isso, é fundamental oferecer suporte psicológico na fase inicial da epidemia, o que tem efeito na redução da incidência do Transtorno de Estresse Pós-Traumático. “Fatores psicológicos, como o estresse, induzem à percepção de risco de infecção, de se sentir mais exposto. Simione e Gnagnarella apontaram que a ansiedade relacionada à morte influenciou a preocupação em relação às consequências graves ou fatais da infecção”, comentou Amaral.
Outro estudo, desta vez sobre a saúde mental dos profissionais da saúde que atuaram na cidade de Wuhan (China), primeiro grande foco da covid-19, apontou que 71,5% tinham estresse; 50,4%, sintomas de depressão; 44,6%, ansiedade; e 34%, insônia. Entre eles, os enfermeiros e trabalhadores da linha de frente apresentaram sintomas mais intensos de estresse enquanto os médicos tinham mais depressão. Já os trabalhadores de hospitais secundários tiveram sintomas mais importantes de depressão, ansiedade e insônia que os dos hospitais terciários, de acordo com estudo assinado por Jianbo Lai e colaboradores.
Comparativamente a um estudo na época da SARS, em 2005, de Wong e colaboradores, os níveis de estresse entre médicos era maior que entre enfermeiros, que por sua vez, foi maior que o dos demais profissionais da saúde. Já o nível geral de angústia estava relacionado com vulnerabilidade, perda de controle, saúde pessoal e da família, propagação do vírus, mudanças no trabalho e a ficar isolado, já que muitos acabavam dormindo no hospital e não retornando à residência para evitar o contágio.
Em estudos com pacientes que receberam alta hospitalar após internação referente à SARS, 44% deles apresentavam quadro de transtorno de estresse pós-traumático, de acordo com uma revisão realizada pelo pesquisador Dimitry Davydow e colaboradores, em 2008. Cinco anos depois, esse impacto era de 25%; e após oito anos, de 24%, ou seja, permaneceram e se cronificaram ao longo do tempo. Os preditores mais significativos foram durações mais longas de ventilação mecânica, permanência em unidades de terapia intensiva e sedação.
Recomendação para a quarentena
A quarentena do covid-19 foi alvo de revisão específica publicada neste ano, por parte da pesquisadora Samantha K Brooks e colaboradores, que registrou que tanto nos profissionais da saúde quanto na população, a medida teve efeitos ansiogênicos e estressantes.. E quanto maior a duração da quarentena, mais significativo o estresse e a dificuldade de manter contato pessoal depois desse período, por medo de infectar familiares e outras pessoas. Essas pessoas também apresentaram perda da rotina, redução do contato social e físico, sentimentos de frustração, tédio, isolamento do mundo, queixa de falta de bens materiais durante o período, queixas de pouca informação e medo de falta de suprimentos (mesmo até 4 a 6 semanas após a quarentena). E, depois do período, também problemas financeiros e estigma.
O estudo indica ainda algumas recomendações a serem seguidas, como manter a quarentena pelo menor tempo possível, oferecer informações consistentes para que pessoas saibam como lidar e esclarecer dúvidas, oferecer grupos de suporte para quem fica em casa e lembrar que, quando as pessoas assumem a quarentena por vontade própria, ela é mais benéfica do que quando são obrigadas.
Influências periféricas
Amaral recomenda algumas ações para que os efeitos psicológicos do covid-19 sejam atenuados nos profissionais da saúde:
– Fornecer treinamento de preparação para a família a fim de evitar a incerteza sobre a segurança do ambiente de trabalho;
– Ensinar aos profissionais da saúde pública onde encontrar informações adicionais e atualizações sobre emergências específicas relativas à função;
– Dar garantias genuínas de segurança e bem-estar pessoal e dos membros da família de que todas as informações pessoais necessárias e medidas de segurança estarão disponíveis, incluindo equipamentos de proteção individual, profilaxia e tratamentos;
– Criar expectativas claras sobre o papel que o funcionário desempenhará e o que é esperado, enfatizando a relevância das funções de cada profissional;
– Treinar os funcionários nas técnicas, no autocuidado e nos recursos de gerenciamento de estresse disponíveis para eles. Criar uma atmosfera de aceitação para autocuidado.
Para ele, as bases para as ações a ser tomadas para precaver e criar ambiente saudável são: prontidão para tomar iniciativas; flexibilidade para repensar ações; estabelecimento de medidas com eficácia embasada em evidências; integração de ações nos níveis municipal, estadual e federal e hierarquias no serviço de saúde (atenção primária, secundária e terciária); criação de linha de comunicação e linguagem clara; e descrição correta dos processos e procedimentos.
Fake news
Também a questão da psicoeducação foi abordada por Amaral, uma vez que a imensa gama de informações sobre a covid-19 na mídia pode contribuir e desencadear transtornos de ansiedade. Ele recomenda que deve-se adotar filtros e um limite saudável de busca pela informação, já que o excesso pode prejudicar transtornos já existentes.
O Cremesp vem atuando no combate às fake news, tendo inclusive dedicado uma edição completa da revista Ser Médico para a divulgação de informação confiável sobre vacinas. Vattimo questionou Amaral sobre como os profissionais da saúde podem auxiliar nas respostas e tranquilizar a população sobre os boatos envolvendo a covid-19. Amaral afirmou que todo profissional deve usar seu papel de difusor do conhecimento e produzir conteúdo qualificado à população. E ainda abordar questões polêmicas para que elas sejam esclarecidas tecnicamente e concretizar um arsenal de informações para seus grupos nas redes sociais.
Vattimo comentou, ainda, que, durante a pandemia da covid-19, os pacientes que já têm transtornos bipolares podem estar vulneráveis com a falta de atendimento eletivo e o desabastecimento de lítio, que ocorreu recentemente. Amaral destacou que o importante é que o psiquiatra mantenha o canal de comunicação aberto com seus pacientes, mesmo que via online, conforme orientações do CFM. E que, quanto antes agir, melhor para ajudá-los a superar as dificuldades e evitar a perda de controle. “Os profissionais procuram tratar as doenças e esquecem que o paciente possui suas habilidades, devendo ser investigadas aquelas que ele faz bem. O processo de avaliação da realidade, por exemplo, é muito importante e isso também é uma habilidade. É preciso conversar e descobrir por que o paciente busca o excesso de informação, se sente desconforto por isso. Tratar a saúde mental se torna fundamental para cuidar da saúde em geral”, disse. Ele recomendou também considerar a possibilidade de indicar doses extras de medicação aos pacientes para as situações extremas durante o período de pandemia. E depois verificar com eles as situações que os levaram a adotá-las.
Diálogo como forma de reconhecer que algo não vai bem com colegas
E, no caso de estresse e doenças mentais dos profissionais da saúde, Amaral defendeu a necessidade do diálogo. Frequentemente os profissionais costumam fazer de conta que os problemas não existem ou só se questionam sobre a falta de diálogo quando acontece uma situação extrema, como o suicídio de um colega. “Temos que entender as preocupações e fantasias que acometem os profissionais e não ignorar ou minimizar, mas conversar sobre o que eles estão vivenciando. Falar sobre o assunto dá mais resultado que o remédio”, afirmou.
Confira a live completa no canal do Cremesp no YouTube.