Manuseio das Vias Aéreas do paciente com covid-19

palestra Manuseio das Vias Aéreas do Paciente com Covid-19 foi ministrada no dia 17 de abril pela anestesiologista Cláudia Marquez Simões, coordenadora do núcleo de via aérea difícil do Hospital das Clínicas – FMUSP, além de referência em intubação no contexto do novo coronavírus, no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) e Hospital Sírio e Libanês. Fez parte da série de aulas on line (lives) organizada pelo Cremesp como estratégia de informação e enfrentamento dos médicos à infecção, e resposta efetiva às fake news.


Na verdade, a aula da anestesiologia se alinha àquela ministrada em 2 de abril pelo professor Carlos Carvalho, da disciplina de pneumologia da FMUSP, relativa à Ventilação Mecânica e Covid-19. As lives no assunto vêm sendo apresentadas pelo conselheiro Edoardo Vattimo, coordenador de Comunicação da Casa, responsável ainda por mediar perguntas encaminhadas pela plateia virtual.

Estar informado sobre tais assuntos é essencial, pois muitos dos pacientes que contraem Covid-19 evoluem com insuficiência respiratória. Ainda que a covid-19 seja uma doença sistêmica, em Wuhan, China – o epicentro inicial da pandemia –, relatou-se que 60% dos internados em Unidade de Terapia Intensiva (uti) foram intubados em virtude de dificuldades respiratórias e de oxigenação.  “Estima-se que 2.600 pacientes foram submetidos à intubação orotraqueal (IOT), dos 79.824 casos registrados naquele país”, explica Cláudia.

Aspectos clínicos 
De acordo com a médica, se realizar IOT já é estressante na rotina de urgência e emergência, torna-se muito mais em situação de pressão sobre o sistemas de saúde com recursos restritos, e, ainda, ao se lidar com agente altamente contaminante e que, por isso, demanda de proteção extra para a equipe de saúde.

No âmbito da covid-19 estima-se que 14% desenvolvem dispneia ou taquipneia; apresentam infiltrado pulmonar maior que 50 % em 48 horas; 61% dos internados em UTI têm Síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA). Além destas, sofrem pelas consequências de disfunções orgânicas múltiplas, como lesão cardíaca, em 23% dos casos em UTI; lesão hepática, em 29%; lesão renal, em 29%; e alterações neurocognitivas, em ⅓ dos pacientes.

Intubação: condutas iniciais 
Conceitualmente, o mecanismo que leva a vias aéreas difíceis pode ser dividido em anatômicos ou fisiológicos. O primeiro caso é clássico e se refere a pacientes com alterações morfológicas de suas vias aéreas. Contudo, associa-se a à covid-19 também um componente de dificuldade com origem fisiológica, por conta dos efeitos sistêmicos da doença.

Assim, mesmo em pacientes mais favoráveis anatomicamente, a IOT pode ser tornar desafiadora em portadores de covid-19, em vista da baixa reserva pulmonar e pelo fato de que, em geral, aquela pessoa já vai ser encontrada dessaturando no momento da intubação.  Além disso, o estresse é grande, pois o cenário trazido pelo novo coronavírus não é o habitual: exige do profissional grande habilidade prática em intubação de vias aéreas difíceis e preparação para os planos implícitos em intubação difícil, como A, B, C – e, se necessário D.

Antes da IOT, deve ser considerada a hipótese de o procedimento dar errado, tornando necessária cirurgia. Por isso, é prudente identificar a membrana cricotireóidea do assistido, com palpação ou escaneamento por ultrassom, marcando o local na pele do paciente. Para visualizar melhor as cordas vocais, recomenda-se o uso de um videolaringoscópio.

O painel internacional sobre intubação em covid-19 a partir de dados obtidos por pesquisadores na área é reproduzido abaixo.


A ideia de ter à disposição vários planos de ação partiu da experiência de médicos que atuaram no front em Wuhan e, ainda, do preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Ao fazer uma intubação de paciente com covid 19 é preciso ter tudo funcionando e estratégia de resgate, caso algo dê errado” explica a anestesiologista. O essencial:  fonte de oxigênio acessível e disponível, que consiga chegar até o paciente; auxílio, pois quem está intubando nem sempre consegue fazer tudo sozinho – o ideal é ter outro colega clínico ou intensivista de stand by, paramentado; monitoramento adequado ao paciente; e ventilador disponível e funcionando.

É importante ainda checar a estabilidade hemodinâmica; verificar todos os conectores e, uma vez que o paciente esteja intubado, minimizar ao máximo eventuais desconexões para evitar quebra de barreira capaz de proporcionar aerossolização; bem como, avaliar se o acesso intravenoso está funcional, garantindo que o atendido receba as drogas de maneira efetiva.

Ainda no cenário pré-intubação, algoritmo didático da Sociedade de Via Aérea Difícil sugere ter à mão, antes do procedimento:
•    cânulas orofaríngeas
•    estiletes para intubação
•    tubos traqueais com vias para aspiração
•    dispositivo supraglótico como máscara laríngea (para resgate)
•    dispositivo para aspiração de via aérea, se possível, aspirador rígido
•    lubrificantes, se necessário
•    fixadores para o tubo
•    seringa para insuflar balonete
•    clamp (braçadeira) é desejável
•    videolaringoscópio é recomendado

Idealmente a proteção do tubo deve ser feita com um êmbolo de seringa, conector swivel ou por clampeamento, com o intuito de reduzir liberação de aerossóis pelo reflexo de tosse do paciente. Somente após a conexão do tubo ao ventilador, o clampeamento deve ser removido.

Paramentação 
Não há em literatura informações sobre as chances de profissionais de saúde contraírem covid-19 por procedimentos que resultam liberação de aerossóis. Contudo, em um paralelo com estudos sobre SARS, estima-se que os riscos de contaminação sejam seis vezes maiores em IOT; três vezes, em ventilação não invasiva (VNI); 4.2 vezes em traqueostomia. 2.8 vezes, em ventilação com máscara facial.

“Qualquer procedimento que manipule as vias aéreas carrega um risco de contágio do profissional”, explica a especialista no assunto. Nessa conjuntura, a importância da paramentação é percebida por algumas especificidades. Por exemplo, durante a intubação o fio guia do videolaringoscópio fica a uma distância curta do paciente, o que facilita o contágio da equipe com aerossóis.

No Brasil são seguidas as recomendações nacionais, porém, quando os equipamentos disponíveis são comparados com os de outros países, observa-se relativa deficiência.
No decorrer da IOT, a equipe deve ser mínima e estar toda paramentada com EPIs, como máscara N95; face shield; avental impermeável, touca e luva dupla: realizada a intubação, o médico deve retirar a luva de cima, para evitar contaminação de outros materiais dentro da sala.

Após o procedimento, o ideal é que a desparamentação seja feita de maneira atenta e checada por outro membro da equipe. Se possível, fora do ambiente de intubação.
Em manuscrito publicado na New England Journal of Medicine (NEJM) em que os autores abordam a dispersão de micropartículas, é discutida a inclusão de métodos de barreira de proteção, como o uso de caixa de acrílico colocada em volta da cabeça do paciente na IOT, que permite a intubação através dela. Demonstraram-se úteis em manequins, mas apresentam a desvantagens de funcionarem como distratoras, causando atraso no procedimento, mesmo entre os profissionais mais gabaritados. Foi semelhante ao ocorrido com barreiras adaptadas com sacos plásticos.

Ainda sobre as barreiras acrílicas ou plásticas:
•    A tentativa de uso de barreiras pode dificultar os procedimentos e, com isso, aumentar o potencial de contaminação
•    Só utilizar as barreiras de proteção física adicionais com o plástico ou caixas de acrílico após treinamento em manequins
•    O uso pode ser salutar no momento da extubação
•    Garantir que o paciente não reaja durante a intubação pode ser superior à proteção com barreiras

A intubação 
A recomendação para o paciente que necessitar intubação por covid-19 é que seja um procedimento rápido, em virtude da baixa reserva pulmonar, e para minimizar os riscos de aerossolização: o “tiro” tem que ser rápido e exige preparação do profissional.

Uma vez que o material esteja separado e a equipe esteja paramentada e protegida, o paciente precisa ser pré-oxigenado com Fi02  a 100%, com a máscara facial coaptada em sua face. O objetivo é promover a desnitrogenização do pulmão do paciente e conferir mais tempo para o procedimento de intubação. No intuito de evitar vazamento de partículas, a literatura descreve conduta simples e eficiente: cobrir o nariz e boca do atendido com gazes umedecidas, que não vão dificultar a passagem do ar.

A sequência rápida de intubação seguindo o Plano A pode ser feita por vídeolaringoscópio (a primeira escolha, por permitir melhor ângulo de visão) ou direta, e se restringir a duas ou três tentativas. Os planos B ou C usam dispositivo supraglótico e também se resumem a duas ou três tentativas. Prevêem decisões quanto a mudar o tipo ou o tamanho do dispositivo e, ainda, em relação a ventilar sob a máscara, perante insucesso. Já o plano D é cirúrgico e corresponde à cricotireoidostomia.

Paper recente apregoa duas estratégias chamadas de He ou She, nas quais o objetivo é agregar maiores mecanismos de proteção e afastar aerossolização, conectando o filtro HEPA diretamente no tubo que vai ser utilizado no videolaringoscópio.

Para avaliar a dificuldade de acesso à via aérea pode-se usar o score MACOCHA sobre previsibilidade de VAD.

Em um check list antes da intubação é imprescindível avaliar:

  • Monitorização – necessário eletrocardiograma (ECG); oximetria; medição de pressão arterial não invasiva (PANI); capnografia; e checagem de acesso venoso prévio.
  • Posicionamento – avaliar ramping/decúbito 30º; colocação de coxim occipital; checar cama fixa.
  • Pré-oxigenação – maior ou igual a 3-5 min ou ETO2 > 85-90%
  • Otimizar a condição clínica – Fluidos/vasopressor/inotrópico
  • Aspiração pela sonda nasogástrica (SNG).

Na realização de IOT é preciso:

•    Insuflar o cuff (ou balonete do tubo endotraqueal, dispositivo que serve para obstruir ao redor das vias aéreas) antes de ventilar
•    Checar a capnografia
•    Apertar as conexões
•    Clampear o tubo
•    Evitar desconexões
•    Introduzir SNG

Ao final do procedimento:

•    Desligar o videolaringoscópio
•    Retirar cuidadosamente os equipamentos
•    Descontaminar os reutilizáveis

Idealmente, a IOT deve obter sucesso na primeira tentativa, mas limita-se a três. Deve-se garantir o adequado bloqueio neuromuscular (BNM), muitas vezes, lançando mão da manobra back up right position (Burp), que consiste no deslocamento da glote para baixo, para cima e para a direita, abrindo espaço ao local de mais fácil visualização.
No caso de não conseguir promover a intubação, o médico deve verbalizar isso, permitindo que os demais membros da equipe se inteirem da situação. Perante falhas, preconiza-se não insistir, isto é, não realizar múltiplas tentativas, para não aumentar o potencial de liberação de aerossol e de o paciente reagir, pois a manipulação da traqueia é um altíssimo estimulador para a tosse. Se há previsão de dificuldade é preciso contar com equipe cirúrgica presente.

Consensos de revisão de manipulação de vias aéreas sugerem algumas restrições quanto a procedimentos específicos em covid-19. Fazem parte desse contingente médicos maiores de 60 anos; portadores de doenças cardíacas ou pulmonares crônicas; diabetes; cânceres tratados recentemente; imunossuprimidos; e gestantes.

Medicações em sequência rápida de intubação
As medicações a serem usadas na sequência rápida de intubação dividem-se em três enfoques: destinadas ao preparo antes da realização de IOT; hipnóticos; e relaxantes musculares.  Na primeira situação, visando suprimir reflexos durante a intubação, é preconizado o uso de 1 a 3 microgramas por quilo de fentanil (1-3 mcr/kg); e 1,5 mg/kg de lidocaína.

O uso de hipnóticos depende do quadro clínico dos pacientes. Propofol 2 mg/kg é indicado para a supressão de reflexos, mas pode não ser a primeira indicação para pacientes hemodinamicamente instáveis, podendo ser substituídos por cetamina 1-2 mg/kg ou etomidato 0,2 – 0,3 mg/kg. No uso de relaxantes musculares, o indicado é a succinilcolina 1-1,5 mg/kg ou, se contraindicada, rocurônio 1,2 mg/kg

Ressalte-se em IOT:

•    Uma vez induzido, retirada a consciência, e promovido o relaxamento muscular, o paciente NÃO DEVE ser ventilado

•    Caso o relaxante usado seja succinilcolina, atentar as mioclonias e aguardar seu término para iniciar a laringoscopia

•    Sempre realizar a intubação com o uso do fio guia

•    Solicitar ao membro mais experiente e habilidoso da equipe para fazer a primeira tentativa

•    A ventilação não é desejada, mas essencial perante falhas

A sequência atrasada de intubação pode ser usada em covid? 
Tal conceito não agrada a especialista em vias aéreas difíceis, pela possibilidade de o paciente ventilar espontaneamente e dispersar aerossol. “O plano é mantê-lo em ventilação espontânea e fazer a cetamina para ganhar mais tempo na pré-oxigenação”.

Segundo ela, o paciente vai estar instável, com uma má troca: não é o tempo de oxigenação que vai melhorar esses níveis de saturação, ou seja, não fará muita diferença.  “Minha intubação servirá para permitir a ventilação mecânica, não é terapêutica. É só um mecanismo pelo qual vou conseguir ventilar”.

Filtros disponíveis
No processo de IOT têm-se à disposição vários tipos de filtros, desde os filtros ULPA (ultra-low particulate air), não muito disponíveis no Brasil, porém, que seriam o topo da lista pelo potencial viral e bacteriológico; filtros HEPA (high efficiency particulate arrestance), e filtros HME (heat and moisture exchanger), todos com filtragem tanto bacteriológicas e virais.

O  HME é mais utilizado próximo ao tubo acoplado ao paciente, em virtude da vantagem de constituir-se num trocador de umidade e de calor: como vai ficar um bom tempo intubado, se passar por ventilação mecânica, o doente receberá fluxos de gás fresco, e seco, levando ao ressecamento na orofaringe, e formação de rolhas, capazes de dificultar sua recuperação em médio e longo prazos.

Mensagens principais da especialista em vias aéreas, Cláudia Simões: 
•    planejem o acesso da via aérea
•    priorize a segurança da equipe para evitar contaminação
•    sempre tenham por perto profissionais treinados para manuseio da via aérea
•    evitem o reflexo de tosse (“bucking”), garantindo a imobilidade do paciente antes do manuseio de sua via aérea
•    tenham sempre um plano B caso o A falhe
•    Pensem que o pior pode acontecer, pequem pelo excesso
•    Treinem, contando com colegas anestesiologistas. O treinamento deve ocorrer a todos os médicos que queiram, como cirurgiões e clínicos.

Vejam a integra da live

Também estão disponíveis as lives: 
Atestado de óbito na covid-19 
Achados histopatológicos e Histopatológicos da covid-19 
Impacto da covid-19 na saúde mental do médico e da população 
Ventilação mecânica e covid-19 
Manejo clínico da covid-19
Aspectos sanitários da covid-19