Virologia e métodos diagnósticos na covid-19
Por se tratar de uma doença nova, portanto, cuja história natural e consequências ainda estão sendo decifradas no mundo, a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 ainda suscita dúvidas em termos de virologia, em especial, sobre os mecanismos fisiopatológicos da infecção e seus métodos diagnósticos, entre outros aspectos.
Para abordar a Virologia e Métodos Diagnósticos na Covid-19 o Cremesp promoveu aula virtual (live) com a participação do Prof. Dr Benedito Fonseca, virologista e docente de Infectologia da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, além de doutor pela Universidade de Yale, nos EUA. A apresentação é parte de uma série referente à pandemia pelo coronavírus organizada pela Casa, que já incluiu, entre outras, exposições sobre manejo clínico, ventilação mecânica, achados radiológicos e manuseio das vias aéreas.
Todas contaram com a participação da plateia on line, encaminhando questões mediadas pelo conselheiro Edoardo Vattimo, e podem ser acessadas pelas redes sociais do Cremesp –Instagram (@cremesp_crm) e YouTube.
Estrutura
Os coronavírus são importantes patógenos. Até pouco tempo atrás, os tidos como mais perigosos eram SARS-CoV (do termo em inglês Severe Acute Respiratory Syndrome), surgido em 2002 na China e com taxa de letalidade em torno de 9,6%; e MERS-CoV (Middle East Respiratory Syndrome) que, apesar de disseminação restrita pelo mundo, alcançou taxa de mortalidade de 35%. Já SARS-CoV-2, apresenta a taxa global de letalidade em cerca de 3.8%, dependendo do local onde é medida.
O agente responsável pela atual pandemia se apresenta na forma de vírus de RNA envelopado (é o menor dos vírus de RNA), com genoma de fita simples, isto é, ácido nucleico não emparelhado, análogo à metade de uma escada dividida no meio. Também tem sentido positivo, isto é, pode ser traduzido em proteínas diretamente pela ação de ribossomos, sem a necessidade da síntese de uma fita de RNA complementar. É também zoonótico, o que significa que pode ser transmitido de animais para seres humanos, por ser um grupo de vírus comum entre as duas espécies.
Os coronavírus são classificados em quatro gêneros de uma mesma ordem: coronavírus alfa, beta, gama e delta. Das sete variedades conhecidas que saíram de animais e infectaram pessoas, quatro são as mais disseminadas entre os humanos: CoV-1193 Alpha Mild Respiratory Tract Infection, 1967; CoV-NL-63 Alpha Mild Respiratory Tract Infection, 1965; CoV-HKU-1 Beta Mild Respiratory Tract Infection Pneumoniae 2005; CoV-OC 43 Beta Mild Respiratory Tract Infection 2004.
Infecção
Para infectar as células, SARS-CoV-2 atua sobre a proteína Spike, nucleoproteína importante para o diagnóstico e patogênese da doença.
Durante a infecção, Spike, presente na superfície do SARS-CoV-2, se liga a uma proteína “receptora” situada no exterior das células humanas, a enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2), permitindo a entrada do vírus nas células do hospedeiro. Para isso, a proteína passa por uma alteração conformacional, processo auxiliado por uma outra proteína da membrana celular da célula hospedeira, o correceptor TMPRSS2 (Transmembrane Serine Protease). Esse processo permite a fusão do envelope viral com a membrana celular. “Quando mencionam o SARS-CoV-2, todo mundo fala apenas da ECA2. Na verdade, para proteína Spike ter uma interação com ela, precisa do auxílio de uma outra proteína de membrana, a TMPRSS2”, explica o professor Benedito Fonseca.
Para ele, “o que é interessante nesse vírus é sua replicação complexa”, com materiais subgenômicos. Isto é, a partir do seu genoma inicial, o vírus consegue produzir várias fitas de RNA mensageiro de tamanhos menores. Porém, por ele ser um vírus de RNA de fita positiva, seu genoma original também é capaz de produzir suas próprias proteínas. Contudo, além do RNA subgenômico, a partir do genoma original do vírus, também é gerada uma fita de RNA sentido negativo, intermediária, a partir da qual novas fitas de RNA de sentido positivo serão geradas, com a meta de ser “empacotada” dentro do novas partículas virais.
Conhecer os meios de replicação de covid-19 é essencial ao desenvolvimento de drogas que impeçam a transmissão do vírus, pois permite identificar potenciais alvos terapêuticos. Por exemplo, pode-se pensar em estratégias que inibam a entrada do vírus, a produção de proteínas virais e a acidificação dos endossonomos, já que o SARS-CoV-2 precisa que os endossomos sejam acidificados, possibilitando que a enzima furina processe proteínas virais específicas, tornando-as infecciosas. A figura abaixo, criada pelo Cremesp na plataforma Biorender, sintetiza e adapta informações publicadas em estudo de revisão na revista Journal of American Medical Association (JAMA) e ilustra artigo da edição 90 da revista Ser Médico.
Hospedeiros e semelhanças entre os coronavírus
Os coronavirus são zoonóticos, e seu hospedeiro natural é quase sempre o morcego. Os intermediários podem ser quaisquer animais.
Pesquisas na China indicaram que, em 2002, de alguma maneira, o SARS-CoV foi transmitido ao homem pelo hospedeiro intermediário civeta (gato da cidade). Em MERS, supõe-se que a transmissão ocorreu pelo dromedário. Por sua vez, a transmissão de SARS-Cov-2 é associada ao ocorrido em mercados de rua chineses, que misturavam no mesmo ambiente animais mortos e vivos, criando a capacidade de que um agente infeccioso típico de morcegos chegasse ao homem.
Por meio de uma árvore filogenética, foram estudadas as proteínas e o material genético dos coronavírus, identificando-se que, basicamente, o SARS-CoV-2 é 80% semelhante ao coronavírus isolado na década passada na China e se localizam na mesma linha genética. Também constituem a mesma família e usam o mesmo receptor para a entrada na célula, que é a enzima conversora de angiotensina 2. O período de incubação também é bem similar entre os coronavírus, em torno de cinco dias na Covid-19, na SARS e na MERS.
Incubação e transmissibilidade
A transmissibilidade da covid-19 ocorre, de um lado, por partículas pesadas que atingem até um metro de distância durante um espirro, e, por outro, por partículas bem menores (inferiores a cinco mícrons), que ficam suspensas no ar em forma de aerossóis. Para o professor, “os esforços devem ser empenhados para impedir a infecção por gotículas ou autoinoculação por fômites (objetos inanimados que são capazes de reter e transmitir agentes infecciosos pelo contato com eles)”.
Portanto, além da transmissão aérea, outra forma comum envolve toques em superfícies contaminadas dos fômites e, em seguida, no rosto. Para dar uma ideia de o quanto essa conduta é imperceptível e automática, Fonseca usou estudo realizado na Califórnia, que observou a quantidade de vezes que um grupo de universitários tateava a face. Em média, isso aconteceu 23 vezes por hora por estudante, sendo a maioria na pele (36%); boca, (33%) e nariz e olhos (31%).
O causador da covid-19 permanece vivo em superfícies, em média, durante dois dias, em materiais como papelão e papel. Contudo, trabalhos recentes apontam maior permanência – 72 horas – em aço inoxidável (principal material para a produção de maçanetas) e em plástico. Se a média de sobrevida do SARS-CoV-2 parece longa, os coronavírus causadores de resfriados e manifestações respiratórias menos comuns podem se manter vivos nos lugares por até nove dias.
Para prevenir a doença, algumas substâncias funcionam bem na higienização, como álcool líquido e em gel a 70%, ótimo para reduzir a infectividade e a quantidade dos vírus; hipoclorito de sódio e cloreto de benzalcônio. “Em outros contextos médicos, a clorexidina costuma ser muito eficaz, mas é ruim na covid-19”, explica Benedito Fonseca.
Patogênese
O mecanismo fisiopatológico da infecção pelo SARS-CoV-2 ainda não é totalmente conhecido. Uma das hipóteses, contudo, postula que o agente causador da covid-19 causa uma regulação negativa da expressão da enzima conversora da angiotensina 2. Com isso, supõe-se que haveria um descontrole da musculatura lisa dos vasos sanguíneos, em especial, nos capilares pulmonares, causando vasodilatação e exsudação de líquido para dentro dos alvéolos. Vários estudos indicam que a lesão pulmonar decorre não só da ação direta do vírus sobre os pneumócitos, mas também pela ação do próprio sistema imune, pois observa-se uma resposta imune descontrolada nos casos graves da doença.
Em relação ao fenótipo clínico resultante, quando infectados, 80% dos indivíduos vão desenvolver uma forma mais leve da doença, que vai desde um quadro de resfriado simples, até algo semelhante à gripe. Cerca de 20% vão apresentar formas mais graves da doença, sendo que até 5% poderão sofrer por um quadro extremamente grave, com necessidade de admissão em UTI, com alterações pulmonares.
A infecção, contudo, não acomete apenas o pulmão, alterando, entre outras, as funções hepática e cardíaca – podendo culminar em miocardite.
Testes laboratoriais e imunidade ao vírus
Conforme diretrizes do Ministério da Saúde, a covid-19 pode ser confirmada pelos critérios laboratoriais e, na ausência de teste, clínicos e epidemiológicos.
Em relação aos exames laboratoriais, alguns testes foram criados, como RT-PCR (do inglês Reverse-Transcriptase Polymerase Chain Reaction), considerado padrão-ouro no diagnóstico da covid-19, cuja confirmação é obtida através da detecção do RNA do SARS-CoV-2 na amostra analisada, de preferência, obtida de raspado (swab) de naso e orofaringes. O exame detecta o genoma do próprio vírus, apresenta um nível de segurança elevado, assim como sensibilidade e especificidade altas, embora seja menos sensível nos primeiros dias da doença e quando a coleta do material não é feita adequadamente. Vale lembrar que as amostras coletadas por swab devem ficar em geladeira, entre 2 a 8 graus célsius por no máximo 72 horas. Após esse período, a qualidade das amostras diminui e, portanto, estas devem ser armazenadas em freezers de temperaturas ultrabaixas.
Já os testes sorológicos, feitos com amostra sanguínea, verificam a resposta imunológica em relação ao vírus, o que é feito a partir da detecção de anticorpos IgA, IgM e IgG em pessoas que foram expostas ao SARS-CoV-2.
Os mais usados são os chamados testes rápidos, disponíveis em dois tipos: de antígeno (que detectam proteínas do vírus na fase de atividade da infecção) e os de anticorpos (que identificam uma resposta imunológica do corpo em relação ao vírus). Apesar de obterem resultado mais rápido – e agilizar condutas médicas – a desvantagem consiste em sua sensibilidade, que vai de 70% a 80%.
Qual teste será empregado, diz Benedito Fonseca, vai depender da fase da doença. Perante quadro agudo o melhor é o PCR, cujo resultado mais confiável acontece quando é feito cerca de dez dias após o aparecimento dos sintomas. Em fase de convalescência é sugerido o teste sorológico, pois o PCR negativou, enquanto os anticorpos permanecem no plasma do paciente.
A recomendação é testar quem tem sintomatologia ao vírus e aqueles que mantiveram contato com pessoa infectada, como o profissional de saúde que cuida dela e os contactantes do paciente. Como ainda não estão disponíveis vacinas e/ou drogas para tratamento é essencial a testagem em massa, incluindo oligossintomáticos ou assintomáticos, para prevenir a disseminação viral, por isolamento social. Testar apenas pacientes sintomáticos graves, além de levar à subnotificação, dificulta no controle da epidemia.
O teste sorológico ideal seria aquele que detecta anticorpos neutralizantes, ou seja, capazes de impedir a infecção viral. O resultado desse teste poderia indicar que o paciente passou pela a doença e que se tornou imune a ela. Esse paciente, assim, ao menos em tese, estaria apto a retornar à força de trabalho cerca de 72 depois do desaparecimento dos sintomas. “Quando é feito um ELISA (do inglês, Enzyme-Linked Immunosorbent Assay) ou teste rápido, sabemos apenas que o paciente tem anticorpos, mas não se eles são capazes de neutralizar o vírus, o que é apenas presumido diante de um resultado positivo”, explica o virologista.
Por quanto tempo tais anticorpos vão continuar no organismo é algo que ainda está sendo estudado. Trabalho realizado na China, do qual participaram 34 pacientes, estabeleceu em seu desenho coletas de sangue entre dois e 39 dias do início dos sintomas, dosadas por quimioluminescência. Foi observado que o anticorpo IgM apresentou um pico em torno da primeira semana e, a partir da segunda, começou a cair. Em torno de 7 ou 8 semanas, desapareceu. O IgG, por sua vez, foi subindo lentamente e se manteve em concentração significativa, sugerindo que a imunidade deve ser duradoura.
Acredita-se também que pacientes portadores de anticorpos neutralizantes possam fazer doação de plasma hiperimune. Vários protocolos de drogas supõem que esse plasma impediria, pela presença desses anticorpos, a infecção viral de novas células, além de contar com componentes antiinflamatórios, passíveis de ajudar na contenção da tempestade de citocinas que pode ocorrer em pacientes graves.
De qualquer maneira, antes de serem disponibilizados testes em larga escala, é necessário refletir sobre o que as pessoas vão fazer com a informação de que são positivas. “Interpretar os resultados e contar com a certeza sobre covid-19 é algo complicado. Se o paciente fizer o teste antes da hora, ou se contarmos com a sensibilidade dos atuais testes rápidos (entre 70% e 80%) existem chances bem altas de falsos-negativos”, informa o professor. Nesses casos, se o paciente suspeito de ter contraído o vírus testar negativo, preconiza-se repetir o exame, dias depois, pois, diante de forte suspeita, deve-se interpretar com cautela um resultado como esse. Isso ocorre porque um resultado falso-negativo poderia oferecer um falso reasseguramento quanto à ausência de infecção, fazendo com que o paciente permaneça em livre circulação e infecte outras pessoas. Reflexo disso também é o fato de o Center for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, por exemplo, recomendar pelo menos dois PCRs negativos para tirar o paciente do isolamento.
Liberação do isolamento
Em si, a remoção do isolamento apresenta desafios. Em geral, os protocolos se baseiam em critérios temporais e clínicos. Já os protocolos que incluem o PCR como critério, contudo, exigem geralmente dois testes negativos. Tal exigência, contudo, pode fazer com que pacientes que teriam condições de liberação – mas mantêm-se com PCR positivos – permaneçam por muito tempo em um leito de isolamento que poderia ser ocupado por outros pacientes.
Para superar tal situação, uma possível alternativa seria desenhar um teste de PCR capaz de detectar fita negativa do genoma do vírus, que indica que está havendo replicação viral. Um trabalho alemão com um grupo reduzido de pacientes usou a detecção das fitas negativas de RNA do vírus, demonstrando que, a partir do 5º dia do isolamento, não foi mais detectado RNA subgenômico. No 8º não foi mais possível isolar o vírus.
Existe algum componente de SARS-CoV-2 vinculado ao HIV?
A suspeita foi levantada pelo virologista francês Luc Montagnier – prêmio Nobel de Medicina em 2008 – que, em resumo, afirmou que o responsável por covid-19 “foi projetado em laboratório e contém alguns genes do HIV”.
Ao responder sobre o fundamento científico da afirmação, o professor Benedito Fonseca considerou que a complexidade do atual coronavírus é alta demais para que seja manipulado geneticamente. “O material genético do coronavírus traz uma série de proteínas acessórias que outros não trazem, assim como o do HIV apresenta características que os outros retrovírus não possuem. Assim, podemos entender talvez tenha havido uma evolução genética desses vírus, mas nenhuma manipulação proposital”.
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