Cremesp promove live sobre alocação de recursos escassos durante a pandemia da Covid-19
O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) promoveu a live “Alocação de recursos escassos durante a pandemia”, em 13 de julho, com aulas dos médicos do Hospital das Clínicas da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Campinas (HCFCM-Unicamp), Thiago Martins Santos, Flavio César de Sá e Diego Lima Ribeiro. O encontro foi coordenado pela conselheira Maria Camila Lunardi, que é uma das responsáveis pela Delegacia Regional do Cremesp em Campinas.
A live, que foi transmitida pelos canais do Cremesp no Youtube, Facebook e Instagram, teve a participação do público nos debates finais, pelo envio de perguntas que foram respondidas pelos participantes. O evento faz parte de uma série de lives que o Cremesp vem promovendo, desde o início dos casos de Covid-19 no Brasil, com o objetivo de levar informações e dados aos médicos que atuam no enfrentamento da pandemia. Veja a seguir um resumo das três palestras apresentadas.
Como devem ser feitas as recomendações e diretrizes
Thiago Martins Santos – médico intensivista,docente da disciplina de Emergência da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp(FCM –Unicamp) e coordenador de UTI-Covid do Hospital das Clínicas da mesma instituição, integrante do grupo de apoio em ética clínica de terminalidade e para o enfrentamento da Covid-19.
Desde o início da pandemia foi percebida a necessidade de criar recomendações e diretrizes para a tomada de decisões difíceis que poderiam vir a ocorrer, tais como a manutenção de novos casos de Covid-19, com a exaustão de recursos, especialmente no que concerne à ventilação mecânica e leitos de UTI. Para o enfrentamento dessa escassez, é fundamental ter apoio institucional, por meio de recomendações formais, baseadas nas melhores evidências possíveis, preferencialmente, feitas por colegiados de especialistas, tais como a Associação Brasileira de Medicina de Emergência (Abramede) e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).
É fundamental que o médico tenha a percepção de que os recursos institucionais estejam no seu limite, para que, somente a partir daí, passe a tomar as decisões difíceis. Também é importante lembrar que os recursos são finitos, sendo um dever ético dos médicos sempre utilizá-los racionalmente, mesmo fora de um contexto de pandemia.
As recomendações devem estar acessíveis aos profissionais, de forma clara e transparente, sendo amplamente divulgadas, e devem ter embasamento técnico, ético e legal. Também é fundamental respeitar a dignidade humana, o que é válido não apenas para pacientes de Covid-19, mas para qualquer pessoa em terapia intensiva. Da mesma forma, é preciso promover a ortotanásia, ou seja, avaliar se as medidas invasivas estão beneficiando o paciente ou apenas prolongando o seu sofrimento. Ao mesmo tempo, é importante que os cuidados paliativos sejam disponibilizados, quando necessários.
Prioridade de internação
Para os pacientes com Covid-19, são aplicáveis os seguintes critérios para priorização de admissão em UTI elencados no artigo 6º da Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) nº 2.156/16:
Prioridade 1: Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com alta probabilidade de recuperação e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico.
Prioridade 2: Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, e sem nenhuma limitação de suporte terapêutico;
Prioridade 3: Pacientes que necessitam de intervenções de suporte à vida, com baixa probabilidade de recuperação ou com limitação de intervenção terapêutica;
Prioridade 4: Pacientes que necessitam de monitorização intensiva, pelo alto risco de precisarem de intervenção imediata, mas com limitação de intervenção terapêutica;
Prioridade 5: Pacientes com doença em fase de terminalidade, sem possibilidade de recuperação.
Os pacientes classificados como de prioridade 5 – para os quais não há tratamento curativo, evoluindo inexoravelmente para um processo de morte – não devem ser alocados em UTI, porque não se beneficiam da terapia intensiva. Esse paciente deve ser alocado em uma unidade de cuidados paliativos, podendo ser colocado em UTI, apenas em situações de exceção.
A maioria dos pacientes de Covid-19 em internação no HC da Unicamp se encaixa na prioridade 3 – geralmente tem idade avançada e comorbidades, com histórico de internações pregressas e complicações.
A aplicação das recomendações da resolução do CFM, logo no início da pandemia, foi importante para fornecer dados e pistas sobre os desfechos dos casos. Dados coletados no HC de Campinas, por exemplo, apontaram uma taxa de mortalidade de 50% entre os pacientes classificados como de prioridade 3.
É igualmente importante ter um escore, como o Sequential Organ Failure Assessment (SOFA), tanto na admissão como na evolução do quadro do paciente, para a tomada de decisão. Também é relevante observar a funcionalidade do paciente na chegada e na evolução do quadro. No HC de Campinas foi utilizada a Escala de Funcionalidade de Karnofsky (KPS) – classicamente aplicada em pacientes oncológicos – na qual se observou uma forte associação com a evolução para limitação de suporte vital. Outra que forneceu dados interessantes foi a Escala de Funcionalidade de Katz, indicando que, quanto maior a pontuação, maior era o risco deo paciente vir a falecer. No protocolo do HC de Campinas foi utililizada, ainda, a Escala de Funcionalidade de PPS (Paliative Performance Scale), para a tomada de decisão sobre a alocação dos pacientes nas alas hospitalares.
N.R. – Mais informações sobre a utilização das escalas de SOFA e PSS são abordadas na 3ª terceira palestra desta mesma live.
Minimização do prejuízo psicológico
Para minimizar o prejuízo psicológico aos pacientes, familiares e à própria equipe de saúde, é importante, já no início, procurar conhecer o paciente, saber o que ele pensa e entender a sua espiritualidade, seus valores e seus desejos. É preciso abordar questões de fim de vida com o paciente e, se ele não estiver em condições, com a família. Isso permite oferecer apoio aos pacientes, incluindo serviços especializados como o de capelania hospitalar, respeitando, assim, sua dignidade.
Para isso, o Grupo Multidisciplinar de Bioética para Discussão de Casos Clínicos do HC da Unicamp criou um núcleo de enlutamento, em colaboração com o departamento de Psiquiatria da FCM-Unicamp. Entre os casos de grande dificuldade para pacientes e familiares que tem sido discutidos por esse grupo, estão, por exemplo, os de pacientes internados no hospital inicialmente por outros quadros, mas que contraíram o vírus no ambiente de assistência.
Entre as ações do grupo, por meio da doação de 24 tablets por uma empresa, está o uso de tecnologias inovadoras à beira de leito, para o contato remoto entre o paciente e familiares ou amigos. Ao minimizar os prejuízos do isolamento, tão característicos da pandemia de Covid-19, a iniciativa foi um exemplo de ação capaz de promover a dignidade dos pacientes internados.
Paralelamente, os profissionais envolvidos no enfrentamento à pandemia também devem receber cuidados. Para isso, o Departamento de Psiquiatria do HC de Campinas tem ajudado no enfretamento da síndrome de burnout, que muitos profissionais estão apresentando durante a pandemia. O assunto foi abordado em maiores detalhes pelo Cremesp na live promovida em 14 de abril.
2ª palestra
Recomendações para admissão e suspensão de tratamentos intensivos em condições de desiquilíbrio entre necessidades e recursos disponíveis
Flavio César de Sá, médico com especialização em Infectologia e Saúde Coletiva, pós-doutorado em Ética e professor doutor da Unicamp.
Prontuário Médico
O prontuário médico do paciente com Covid-19 deve ter um registro claro e objetivo das indicações de terapia intensiva, incluindo também o nível de prioridade e as contraindicações, para cada caso. Também é importante que contenha o registro claro sobre todas as discussões com os familiares, atentando-se para os nomes e grau de parentesco; assim como dos membros da equipe que participaram da mesma – documentando a compreensão dos presentes a respeito do plano de cuidados proposto.
O registro de decisões quanto a limitações terapêuticas e das diretivas antecipadas vontade (quando houver) devem estar presentes no prontuário de forma destacada.
Circunstâncias não determinam princípios
É importante lembrar que a profissão médica tem princípios, algumas vezes milenares, e que as recomendações médicas provêm de princípios que não se alteram com as circunstâncias. Nortearam a elaboração das recomendações, que serão apresentadas a seguir, o respeito à autonomia das pessoas, a possibilidade de benefícios ao paciente e de não causar dano a ele, assim como o princípio de justiça na alocação de recursos escassos (equidade e respeito para com o bem público).
Recomendações
As equipes assistenciais necessitam ter respaldo institucional para a tomada de decisão. As recomendações institucionais devem ser baseadas em princípios, que não se alteram com as circunstâncias ou com o tempo, fundamentadas ética e legalmente, além de públicas. As decisões dos profissionais necessitam estar respaldadas em recomendações fundamentadas ética e legalmente. São exemplos de resoluções e leis que amparam decisões como as que podem ser necessárias no contexto da alocação de recursos da Covid-19 as resoluções do CFM nº 2.156/16, 1805/2003 e 1995/2012, além da Lei Estadual 10.241/1999, que dispõe sobre os direitos dos pacientes. Ainda, é importante que todas essas recomendações e seus fundamentos sejam amplamente publicizados.
Decisões
As decisões, à priori, não excluem ninguém. Os critérios de alocação hospitalar têm de estar relacionados ao estado clínico, com base na possibilidade de recuperação do paciente (necessidades e prognóstico) e potencial de vida, após a recuperação (perspectiva de sobrevivência a partir do estado funcional). Esses critérios não podem se basear em quaisquer outras características que não as clínicas. Deve-se buscar, assim, avaliar se “o tratamento vale a pena para aquele paciente” e não se “aquele paciente vale ser tratado”.
O princípio “zero” é tentar vaga para todos os que precisam. Assim, as recomendações de critérios para ocupação de vagas de UTI devem entrar em vigor somente quando a demanda for superior às vagas disponíveis. Mesmo essa situação de calamidade, contudo, não deve excluir ninguém de receber cuidados. Caso um paciente não possa ser encaminhado à UTI por escassez de recurso, deve, não obstante, receber o melhor cuidado possível, seja ele na enfermaria, no pronto-socorro ou em outro local.
3º Palestra
Recomendações para admissão e suspensão de tratamentos intensivos em condições de desequilíbrio entre necessidades e recursos disponíveis,
Diego Lima Ribeiro – médico assistente do Hospital das Clínicas da FCM-Unicamp, com 10 anos de experiência em pronto-socorro, com formação em Bioética e membro do Centro Interdisciplinar de Bioética da FCM-Unicamp.
A pandemia trouxe o componente de uma demanda muito grande de cuidados aos serviços de saúde. O protocolo utilizado para atendimento aos pacientes de Covid-19, foi construído após reuniões com médicos intensivistas e paliativistas, entre outros, além de advogado especialista em direito médico e psicóloga.
O cenário de assistência à saúde na pandemia de Covid-19 se assemelha ao de atendimento a desastres, com uma grande demanda que suplanta recursos escassos. Assim, já na admissão, devem-se definir critérios para a alocação desses recursos, baseando-se na gravidade e no prognóstico do caso, levando em conta também as comorbidades, além da doença responsável pela internação. O foco deve ser cuidar de todos e tentar salvar o máximo de pessoas. Quem, eventualmente, não puder ser salvo, deverá receber os melhores cuidados possíveis.
Uma das formas de avaliar o estado basal do paciente e traçar uma estimativa prognóstica é a utilização da Escala de PPS (Paliative Performance Scale), amplamente aplicada para pacientes oncológicos. Nos casos de Covid-19, é importante observar, de forma bem criteriosa, os pacientes que têm doenças crônicas e aqueles que já estão em fase avançada de sua doença de base. Esses pacientes podem não se beneficiar de uma terapia intensiva, que provavelmente prolongará o seu sofrimento, sem garantir os cuidados para um bom desfecho.
Avaliado o estado basal prévio do paciente, deve-se avaliar a gravidade e estimar o prognóstico da doença responsável pela internação, seja ela Covid-19 ou não. Para isso, a Escala SOFA (Sequential Organ Failure Assessment) vem sendo utilizada como um dos critérios, no pronto-socorro, para a tomada de decisão quanto à priorização da alocação de vagas de UTI. A escala, que avalia a presença de disfunção em diversos órgãos, é utilizada à luz dos critérios de prioridade do artigo 6º da Resolução CFM nº 2.156/16, elencados na primeira palestra desta live.
Prioridade máxima de internação
Paciente com SOFA menor ou igual a 7 ou falência respiratória (CFM 1 e 2 ): segue para UTI;
Prioridade Média
. Paciente com SOFA de 8 a 11 ou disfunção orgânica sem falência respiratória (CFM 3 e 4): segue para uma unidade de cuidados intermediários;
Sem Prioridade
Paciente com critérios de exclusão para UTI preenchidos ou com SOF A > 11 (CFM 5) é candidato a cuidados paliativos exclusivos: segue para enfermaria, acionando a equipe de cuidados paliativos. Nesses casos, devem ser observadas as recomendações já elencadas acima: compartilhar a decisão com paciente (se possível) e com a família, registrar tudo em detalhes no prontuário, garantir medidas de conforto e seguir protocolos específicos, quando disponíveis.
Pacientes em UTI
Para os pacientes que já estão em terapia intensiva, a avaliação da evolução do quadro e o cálculo do SOFA devem ser refeitos a cada 24 horas para a tomada decisão.
. Paciente com SOFA < 11 e diminuindo ou falência respiratória (CFM 1 e 2): é mantido na UTI;
. Paciente com SOFA < 8 mantido ou ventilação mecânica crônica em traqueostomia ou necessidade de VNI (ventilação não invasiva) ou disfunção orgânica sem falência respiratória (CFM 3 e 4): transferência para unidade de cuidados intermediários;
Paciente com SOFA >11 ou SOFA entre 8-11 e sem melhora ou com critérios de exclusão preenchidos. Nesses casos, após ampla discussão com a equipe e com a famílias, caso haja indicação de limitação terapêutica e/ou suspensão terapêutica, o paciente deve ser encaminhado para a enfermaria de cuidados paliativos, a equipe de cuidados paliativos deve ser comunicada e as recomendações já elencadas para essa situação devem ser seguidas. Caso não haja essa indicação, deve ser mantido o plano de cuidados.
Estes critérios auxiliam o médico na tomada de decisões, entendendo que o sentido de sua utilização é o de dar o melhor tratamento para o maior número de pessoas.
Assista o vídeo das aulas na íntegra aqui.